“Uma vez sonhei que estava contando histórias e sentia alguém dando tapinhas no meu pé para me incentivar. Olhei para baixo e vi que estava em pé nos ombros de uma velha que segurava meus tornozelos e sorria para mim. “Não, não” disse-lhe eu. “Venha subir nos meus ombros, já que a senhora é velha e eu sou nova.” “Nada disso”, insistiu ela. “É assim que deve ser.” Percebi que ela também estava em pé nos ombros de uma mulher ainda mais velha do que ela, que estava nos ombros de uma mulher usando manto, que estava nos ombros de outra criatura, que estava nos ombros...
Clarisse Pinkola Estés em “Mulheres que Correm com os Lobos

Retrato: substantivo feminino
é um projeto feito a partir de residências artísticas, realizadas por nós junto a mulheres ligadas por uma cultura comum e propõe uma troca, uma troca de retratos, confeccionados coletivamente nos formatos de vídeo e fotografia.

Na primeira edição do projeto, que aconteceu entre março e maio de 2009, convidamos para integrar a residência 9 mulheres do entorno da tradição do Cavalo Marinho, com idade entre 14 e 77 anos, moradoras do município de Condado, na Zona da Mata Norte pernambucana. Para a segunda edição, realizada entre março e junho de 2010, convidamos 11 mulheres da tradição do Reinado, com idade entre 12 e 80 anos, integrantes da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e da Guarda de Congo São Jorge de Nossa Senhora do Rosário, no bairro da Concórdia, Belo Horizonte-MG. A terceira edição aconteceu em 2011 e contou com a presença de 8 mulheres do Batuque de Umbigada, com idade entre 36 e 95 anos, moradoras de Piracicaba e Capivari-SP. (Em "residências", propomos um passeio pelas residências realizadas)

O ponto de partida do trabalho é o encontro, um encontro de olhares, de histórias, de percepções, de tempos. O retrato aqui é proposto como processo lento e cuidadoso de fabricação de um olhar, de uma subjetividade. Retrato como uma forma de contar uma história.

Durante o processo transmitimos conhecimentos básicos para o manuseio dos equipamentos de vídeo e foto para a partir daí sugerir atividades em torno da sensibilização do olhar e das possibilidades de olhar para si, de olhar para o outro. (Na seção dedicada a cada residência, "caminhos" contém imagens do processo)

O trabalho se estrutura em torno da idéia de uma “caixinha pessoal”, aquela caixinha onde se guardam as coisas mais preciosas, um objeto da infância, uma carta, um retrato...; durante o processo, a partir de motes como “1 amor em 3 imagens”, “1 música pra mim”, “3 partes do corpo”, cada integrante foi compondo sua “caixinha”, com imagens em vídeo e foto, matéria prima para a costura de possíveis retratos. (Na seção dedicada a cada residência, abrimos nossas caixinhas em "caixinhas")

A partir do encontro no coletivo, a feitura dos retratos propõe olhares, recortes sobre as individualidades. E é a partir das individualidades reveladas que se pode chegar novamente no coletivo, pelo fio que desenha um possível substantivo “feminino”.

Durante o processo, mesmo estando na posição de propor e estimular o trabalho, integramos o grupo, na realização das atividades, como todas as demais, já que a proposta é uma troca, uma descoberta mútua. (Na seção dedicada a cada residência, nos apresentamos em "nós todas")

Entendendo o retrato como aquilo que representa o outro, a escolha de trabalhar com mulheres se deu a partir do desejo do encontro desse substantivo “feminino”. Perceber como um feminino se comunica com o outro, de realidades distintas porém afins. O primeiro desejo foi trabalhar na Zona da Mata Norte de Pernambuco, região da qual nos aproximamos pelo nosso interesse pelas tradições do Cavalo Marinho e do Maracatu Rural. Estivemos diversas vezes na região, acompanhando os grupos, virando noites nas “sambadas” e desvendando um universo novo com o qual nos identificamos pelo brincar, pelo fazer. Durante essas vivências, convivemos muito mais com os homens da região, que são ainda a maioria a brincar, embora as mulheres venham participando cada vez mais. O desejo de realizar esse trabalho com as mulheres da região foi como um desejo de olhar o outro lado, um olhar cuidadoso na tentativa de revelar para nós o feminino nesse universo, dessa região de aparente preponderância masculina. E investigar como mulheres de diferentes contextos se ligam por um fio comum, costurado cuidadosamente a partir de um possível encontro. A partir da experiência em Condado seguimos com o desejo de ir ao encontro de outros grupos de mulheres, de outros grupos, outras tradições, outros contextos. (Na seção dedicada a cada residência, "a rua" mostra um pouco dos lugares de realização do trabalho)

A exibição dos resultados do trabalho ao final de cada residência, cujo formato é definido em conjunto pelo grupo, pretende propor formas diferenciadas que ocupem o espaço urbano, que tragam uma intervenção no cotidiano e na paisagem da cidade, do espaço onde as mulheres estão. Além do material em foto e vídeo, as exibições contam com intervenções sonoras criada pelo músico Helder Vasconcelos a partir de cantos e sons produzidos durante a residência.
(Dentro da seção dedicada a cada residência, as páginas "na rua" mostram imagens do processo de exibição em cada local)

Para a continuidade do trabalho, pensamos também em formas de encontro entre os grupos de cada residência. Criamos um processo de correspondência em vídeo-carta. Propusemos a cada integrante de uma residência que enviasse a uma das integrantes da residência seguinte uma vídeo-carta com uma pergunta - algo que quisesse saber - e um estímulo - algo que quisesse mostrar. As cartas foram entregues e respondidas, e entregues novamente. (Em "correspondências" veja as vídeo-cartas trocadas) Em outubro de 2011, conseguimos reuni-las pela primeira vez, as 25 mulheres, vindas desses 3 territórios, além de nós duas e algumas pessoas que nos ajudaram. Foram 5 dias de encontro, em São Paulo-SP, durante os quais fizemos a abertura de uma exposição no SESC Ipiranga. Com esse material reunido, seguimos andando por aí, fazendo exposições, mostrando, provocando novos encontros, sempre que possível. (Um pouco sobre cada novo desdobramentos do trabalho é publicado regularmente em "na estrada")

Cada passo do trabalho tem apoios, incentivos, ajudas fundamentais, pelos quais agradecemos muito. (Na seção dedicada a cada residência, "nós todos" traz os créditos e agradecimentos para todos os que tornaram possíveis as residências, outros créditos aparecem em "na estrada")

Bom passeio por aqui e agradecemos a visita!

Laura Tamiana e Tatiana Devos Gentile
(Em "nós duas", contamos um pouco sobre nós)